Mais que educador, a potência e a responsabilidade do ser Professor!

Não temos dúvidas do quanto o profissional professor* é imprescindível em qualquer sociedade humana, afinal, antes de chegar ao exercício de qualquer profissão, cada indivíduo precisa passar pela expertise de não apenas um, mas de vários professores. O professor é aquele profissional que nos ensina a enxergar, quando ainda não somos capazes de ver o caminho por nós mesmos. No entanto, sem discussão do porquê, temos visto sua figura profissional ser desprestigiada e desvalorizada, a ponto de muitos terem de se apoiar no jargão “não sou só um professor, sou um educador” para reafirmar para si mesmos e para a sociedade o valor fundamental de sua profissão. Quem seria néscio ou tolo para não reconhecer a importância social da educação e, por conseguinte, dos educadores? Quanto uma sociedade pode sofrer se seus indivíduos não receberem uma educação minimamente adequada? Hoje, com todo o respeito que tenho para com todos os educadores, peço licença para uma inversão do jargão, propondo do seguinte modo: “não sou só um educador, sou professor!

Mesmo que pareça, não se trata de qualquer demérito aos educadores, mas um esforço por enxergar educadores e professores a partir do lugar de responsabilidade que ocupam. Lembro-me de uma das primeiras leituras no curso de Pedagogia, o livro “O que é Educação”, do professor Carlos Rodrigues Brandão, onde começamos aprendendo que a educação acontece independentemente da existência da escola, nos mais diferentes lugares, e de diferentes formas, conforme cada cultura. E quem são os educadores? Os educadores são todas as pessoas que, de alguma maneira, assumem a tarefa de ensinar as novas gerações e de fazer com que se introduzam na sociedade de acordo com as normas, valores, crenças e costumes nela praticados, mas também com aquilo de novo que se considera necessário aprender. Em casa, o pai e a mãe são os educadores dos filhos, mas o filho mais velho também pode atuar como um educador em relação aos irmãos mais novos, o avô em relação aos netos, os tios em relação sobrinhos. Na igreja, o padre ou o pastor também são educadores dos fiéis. Nas diferentes frentes de trabalho, os profissionais experientes são educadores dos iniciantes. Na televisão, os roteiristas de jornais e telenovelas também atuam com um papel educador. Ora, diante dessa profusão de educadores, atuando em tantas frentes sociais, como definir quem de fato é educador, se qualquer um pode ser? E que valor tem a educação realizada por pessoas a partir de lugares sociais tão distintos? Quem poderá dizer que a educação que recebi de minha mãe, uma costureira semianalfabeta, mas com uma firmeza ímpar de caráter, é menos valiosa que se ela tivesse um diploma universitário? Ninguém.

Os educadores são aqueles que nos introduzem no mundo quando nele chegamos; que nos mostram como ele funciona e nos ensinam como devemos agir nas mais diferentes situações; são aqueles que nos ensinam o que é importante, o que é bom e o que é mau, o que é verdade e o que é mentira, o que é certo e o que é errado, o que devemos e o que não devemos fazer; são aqueles que também nos mostram que podemos trilhar por diferentes caminhos. Os educadores atuam no mundo que conhecem, baseados em suas experiências e nas expectativas que suas crenças e sonhos lhes permitem ter. Em seu mundo adulto, os educadores estão sempre se adaptando e respondendo aos desafios e novas exigências de sua realidade, e preparando as novas gerações para que também enfrentem esses desafios e exigências com sucesso. Os educadores cuidam para que o mundo continue a ser, a existir, com a força das novas gerações. E se o mundo está mudando, os educadores também cuidam para que as novas gerações se adaptem a essas mudanças. Os educadores seguem o fluxo. Até aqui, contudo, não estamos falando de professores, embora não haja qualquer dúvida de que também eles são educadores.

Ampliando a reflexão, pensemos por um momento em outras práticas sociais. O cuidado com a saúde, por exemplo. Em alguma medida, há sempre alguém da família que conhece os cuidados mínimos necessários no caso de uma gripe, uma indigestão, um arranhão. Para isso, há toda uma fonte de conhecimentos práticos transmitidos entre as gerações das famílias, vizinhos e membros da comunidade. Esses conhecimentos e um kit de primeiros socorros atendem bem a um bom conjunto de situações imediatas. Contudo, os conhecimentos práticos e consolidados no senso comum não são suficientes em casos de maior gravidade. Ainda hoje se testemunha práticas primitivas de cura baseadas em rituais exóticos, uso de ervas medicinais conhecidas por poucos, e mesmo superstições. Por outro lado, os profissionais médicos compreendem cada vez mais o funcionamento do corpo humano, sendo capazes de intervenções médicas cada vez mais precisas e inimagináveis até bem pouco tempo. Em contraponto ao curandeiro, que não responde por seus rituais de cura, o profissional médico, que cuida da saúde humana com conhecimento sustentado na ciência, responde por qualquer situação de negligência ou erro no exercício de sua profissão.

“Galhos Descendentes” de Pedro Murar – Colégio São Luís (SP) para o 4º Concurso de Redação e Arte, 2019.

Um outro exemplo. Quando alguém quer construir uma casa, o mais comum é a busca de um pedreiro experiente, que escuta a necessidade do contratante, apresenta um orçamento e constrói a casa com o mínimo necessário de segurança. Seu conhecimento e seu trabalho, contudo, são de natureza prática e limitados, fundados em sua experiência. Em contrapartida, a engenharia civil evoluiu de tal maneira que um engenheiro é capaz de calcular, com precisão, a estrutura e todos os materiais necessários para erguer com segurança um edifício com dezenas de andares, orientar e supervisionar sua construção. E caso a obra venha a apresentar qualquer problema estrutural no futuro, por alguma falha no projeto, esse mesmo engenheiro é responsabilizado. Sem desmerecer a importância dos cuidados caseiros com a saúde e dos serviços de bons pedreiros, a medicina e a engenharia civil representam a evolução dessas práticas sociais, projetando-as em função de suas possibilidades e desafios futuros.

Com a educação, não é diferente. Quando a sociedade necessitou garantir que determinados saberes fossem repassados a um número cada vez maior de seus indivíduos, para que estes pudessem responder às realidades econômicas e produtivas, as práticas educativas passaram a se tornar objeto de reflexão, estudo e sistematização. Quando, em vez de simplesmente garantir-se a inserção e adaptação das novas gerações no mundo, passou-se a esperar que a educação fosse um caminho para uma transformação intencionada desse mesmo mundo, os saberes difusos e informais dos diversos educadores, atuando de forma não controlada, passaram a ser insuficientes. A prática educativa precisou evoluir, passando a ser pensada e teorizada pela Pedagogia, a ciência da educação, e os educadores, até então informais, cederam seu protagonismo para os professores, os profissionais da educação.

Como profissionais, os professores são aqueles que em sua formação estudam a prática educativa a partir de diferentes referenciais: histórico, filosófico, sociológico, psicológico, antropológico, metodológico, epistemológico, além das especificidades das diferentes áreas do conhecimento e das práticas de ensino. Mas nada disso é requerido dos educadores que não são profissionais da educação. E embora a história da profissão docente não possa ser reduzida ao que aqui se apresenta, é importante destacar que os professores carregam consigo a responsabilidade de quem, entendendo toda a complexidade e potência imanentes à prática educativa, atuam junto às novas gerações lançando permanentemente as sementes do mundo que será construído por essas gerações. Esse mundo pode ser uma simples continuidade e reprodução do que já se vive, ou o fruto de uma nova visão de humanidade. No caso dos professores que atuam nas escolas da Companhia de

Jesus, espera-se que essas sementes estejam carregadas de uma profunda convicção de que o mundo depende de pessoas conscientes, competentes, compassivas e comprometidas. E certamente nossos fios de esperança na educação serão renovados quando cada professor, por consciência de seu papel social e de sua potência e responsabilidade educativas, começarem a defender a si mesmos sob um novo jargão: “Sou mais que um educador, sou um Professor!”.

* Ao longo do texto, utilizo a convenção linguística de uso dos vocativos no masculino, para referência a professores e professoras, educadores e educadoras, por uma questão de fluidez na escrita e leitura do texto, sem que isso represente qualquer demérito ao gênero feminino.

Julival Alves da Silva

Assessor Pedagógico do Colégio Diocesano – São Francisco de Sales, em Teresina, e doutorando em educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

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